Anunciação - Museu Metropolitan, Nova York

Entre tantas e tão insondáveis belezas que refulgem no Mistério da Encarnação do Verbo, o maravilhoso relacionamento — todo feito de amor e humildade — que Mãe e Filho mantiveram durante os nove meses da gloriosa gestação, tocava de modo particular a alma de Dr. Plinio. Acompanhemos outros expressivos comentários dele a esse propósito.

No dia 25 de março a Igreja celebra a festa da Anunciação e da Encarnação do Verbo no seio puríssimo de Nossa Senhora. Para se avaliar a extraordinária importância desse fato, convém estabelecermos algumas considerações prévias.

Em Nazaré, a realização de um anseio milenar

Há quatro mil anos, ou mais, em todos os homens — e de certo modo em todos os seres — latejava um desejo de que, afinal, nascesse Quem seria o centro de todas as criaturas e em função do qual tudo se ordenaria.

Assim que delineou em seu espírito o último traço da figura do Redentor, Nossa Senhora recebeu a visita de São Gabriel e o anúncio da Encarnação

Devido ao pecado original e aos pecados atuais da humanidade, o mundo se achava imerso em grande desordem, cujos efeitos se faziam sentir não apenas entre os pagãos como também no povo eleito, que fora escolhido para o cumprimento da promessa messiânica. Decadência e afastamento dos preceitos divinos: a terra inteira estava desolada.

Entretanto, uma virgem pura, concebida sem a mácula original expressamente em vista da missão de gerar o Verbo Encarnado, nascera de Santa Ana e de São Joaquim. Unida em matrimônio com o varão virgem São José, Ela meditava, sabendo que a única solução para o gênero humano era a vinda do Redentor. Maria percorria as páginas das Escrituras, das quais possuía perfeita ciência, considerava as promessas e refletia a respeito do Messias.

Segundo revelações privadas, Nossa Senhora compunha em sua alma a figura moral e física do Filho de Deus, e quando delineou o último traço nessa obra-prima da sabedoria d’Ela, fruto de sua virtude e amor a Deus, eis que se vê envolta num intensíssimo fulgor: São Gabriel Lhe aparece e diz: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28).

De extrema beleza, o paralelo entre o primeiro ato de veneração de Jesus à sua Mãe, quando se encarnou, e o último, no alto do Calvário

F. Boulay

T. Ring
Na página 20, detalhe da Anunciação – Museu Metropolitan, Nova York; à direita, Calvário – Catedral da Sé, São Paulo (SP)

Ela se perturbou, pois não entendeu o significado dessa saudação. O mensageiro celeste então Lhe explicou que o Verbo eterno se encarnaria em seu claustro virginal. Podemos imaginar o humílimo susto que A tomou! “Como se fará isso, pois não conheço homem?”, indagou a Virgem. E o anjo respondeu: “Serás a Esposa do Espírito Santo, que em Ti engendrará o Filho do Altíssimo”.

Esse anúncio representava um tal cúmulo de graças e de favores, uma tão superlativa generosidade que nos é difícil calcular como Nossa Senhora se sentiu confundida naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, enlevada e feliz, conhecendo que Deus A escolhera para tão sublime obra. Sua gratidão foi ilimitada, e a alegria de se sentir unida dessa forma a Deus, houve de ser maior que todos os mares e oceanos!

Donde sua resposta: “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa palavra!” (Lc, 1, 38).

Maravilhoso mistério

Realizou-se, então, o estupendo milagre, o maravilhoso mistério dos desponsórios do Espírito Santo com Nossa Senhora e a concepção de Jesus Cristo no seio puríssimo d’Ela, recebendo da Virgem e unicamente da Virgem os elementos para a formação de seu Corpo: caro Christi caro Mariae — a carne de Cristo é a carne de Maria.

E desde o primeiro instante dessa augusta gestação, teve início o indizível relacionamento entre Mãe e Filho, com recíprocos atos de amor e carinho que excedem a qualquer imaginação.

Belo ao extremo, aliás, é o paralelo que se pode traçar considerando-se, de um lado, o primeiro ato de veneração de Jesus a Maria Santíssima quando Ele se encarnou, e de outro, o último, por ocasião da morte d’Ele no alto do Calvário. De fato, nada nos impede de supor que, antes de exalar o derradeiro suspiro, esse Filho infinitamente amorável voltou os olhos da alma para a Mãe e Lhe dirigiu uma carícia suprema.

E como terá sido a correspondência de Maria a essa ternura filial? Quanto mais Ela O via sofrer de modo tão trágico e terrível, mais O amava. Não se terá lembrado, então, dos primeiros afagos, da primeira troca de carícias?

Tais correlações esplendem tantas e tão especiais pulcritudes que só podem nos encantar e entusiasmar!

União e santidade incomparáveis

Por mais magníficas que sejam, porém, elas apenas abrem o pórtico para uma série de maravilhas ainda maiores. Ressaltemos, à guisa de exemplo, o fato de que durante nove meses o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo ia se nutrindo dos elementos necessários para crescer até atingir o tamanho normal próprio ao nascimento. Houve, portanto, durante esse período, uma entrega de elementos (se assim se pode dizer) do corpo d’Ela para o d’Ele, e de assimilações do que a natureza humana do Filho recebia da mãe.

Ora, à medida que essa comunicação de elementos se dava no terreno orgânico, verificava-se uma crescente união de amor entre as duas almas, maior a cada etapa sucessiva da gestação. Donde se supor que, quando o Corpo do Verbo Encarnado estava pronto para nascer, a alma de Nossa Senhora se encontrava embelezada com todos os adornos inexprimíveis que Lhe vinham dessa íntima união com Ele.

Aguardado há quatro ou cinco mil anos por todos os justos, cantado pelos profetas, glorificado pelos anjos, Nosso Senhor Jesus Cristo ali estava. Mas, antes de tomar contato com os homens, quis passar nove meses exclusivamente em companhia de Maria, dizendo-Lhe palavras, confidenciando-Lhe maravilhas, instruindo-A acerca das grandezas divinas, como não faria com nenhuma outra criatura.

Ou seja, estabeleceu-se entre os dois uma união, nimbada de santidade, incomparável. Com esse algo de contraditório e magnífico, no que diz respeito a Nossa Senhora: Ela possuía todo o esplendor de uma Virgem e toda a majestade de uma Mãe. Virgem antes, durante e após o parto; Mãe acima de todas as mães. De maneira que, olhando para Ela não se sabe o que exclamar: Ó Virgem! Ó Mãe!

O Filho de Deus se fez escravo de Nossa Senhora

Cumpre observar que o mistério da Encarnação encerra outra insondável maravilha, à qual São ­Luís Grignion de Montfort alude com a força e delicadeza de expressão que lhe são características. Conforme ele nos ensina, quando Nossa Senhora disse a São Gabriel: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, realizou-se o inimaginável e o próprio Deus Encarnado se fez escravo d’Ela. Não há maior sujeição nesta Terra do que a do filho para com sua mãe, enquanto esta o traz consigo em seu seio. E durante nove meses consecutivos Jesus, com essa submissão, quis pertencer inteiramente à Virgem Santíssima. O esperado das nações, o Homem-Deus, tornou-se escravo de Maria1.

Ao discorrer sobre essa completa dependência de Nosso Senhor Jesus Cristo em relação a Nossa Senhora, São Luís Grignion acentua que o Divino Salvador, no sentido mais estrito da palavra, quis vir a nós por meio de Maria. Ela como que O produziu para a humanidade; devemos a Ela o fato de termos recebido o Redentor, e se algo quisermos d’Ele, importa recorrermos à divina Mãe. Ela foi o caminho para Jesus vir até nós; é o caminho para irmos até Ele2.

Durante esse período, Jesus e Maria propiciaram aos homens uma admirável lição de humildade. Pois, sem dúvida, Nossa Senhora, sendo como que um ostensório vivo, deveria se sentir aniquilada pela desproporção entre Ela e o Hóspede divino que habitava no seu interior. Por seu lado, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, onipotente, superior a todas as coisas, tomou nossa natureza, abateu-se, reduziu-se a uma espécie de cárcere maravilhoso, sujeitou-se a uma simples criatura. Mostrou-nos como é belo e nobre obedecer.

Que são todas as glórias terrenas diante do augusto privilégio de se tornar Senhora do Senhor da criação?!

F. Boulay
Virgem e o Menino – Museu Metropolitan, Nova York (EUA)

Glória acima de todas as glórias

Vemos, assim, como o Divino Salvador, em sua sabedoria, dispõe de meios admiráveis para nos instruir. Modelo de todas as virtudes, Ele o é, portanto, da humildade, e a demonstrou desse modo magnífico. Supremo, perfeito, absoluto, a praticou em relação a uma mulher. Lição concludente, dir-se-ia até “desconcertante”: o Criador do universo se sujeitou a Nossa Senhora.

Glória existe em ser rei de um reino, imperador de um império, superior de um convento, bispo de uma diocese, Papa da Santa Igreja. Que são essas glórias diante do augusto privilégio de se tornar Senhora do Senhor da criação? Essa glória, Deus a reservou à Santíssima Virgem, da qual quis ser Filho e escravo. Mistério fascinante, refulgente de cores e luminosidades indizíveis!

No Céu, filiais perguntas…

Ao concluirmos essas breves reflexões sugeridas pela festa da Anunciação, caberia exprimirmos um desejo repassado de veneração e respeito.

Nossa Senhora se encontra no Céu em corpo e alma. Quando — pela misericórdia d’Ela — lá também estivermos e nos lembrarmos dessas considerações, quiçá nos aproximemos de seu trono, tão junto ao de seu Divino Filho, e Lhe peçamos: “Minha Senhora e Mãe, podeis me contar tudo o que meditastes desde o momento da Encarnação até o do nascimento de Jesus? Quero saber tudo, e que nada me fique ignoto. Minha Mãe, perdoai meu atrevimento, mas peço que me seja contado por Vós mesma!”

E Nossa Senhora, régia, bondosíssima, dulcíssima, condescenderia em nos responder: “Filho, começou assim…”

Imagine quem puder, a torrente de alegria, de emoção e de felicidade que nos inundaria ao ouvirmos dos próprios lábios puríssimos de Maria, a narração de tudo quanto Ela sentiu e viveu a partir do instante em que, por obra do Espírito Santo, o Verbo de Deus se fez carne no seu claustro materno!

(Extraído de Conferência em 24/3/1984)

1) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 18 e 139.

2) Cf. Idem, n. 50.